sexta-feira, 22 de julho de 2016

A morte e o nascimento de J. P. Cuenca nas telas

por Caio Garrido
Uma autoficção engendrada através de um caminho tortuoso e tênue sobre um fio autobiográfico. Assim poderia ser definido o filme de estreia do escritor (e agora diretor) João Paulo Cuenca.

Eis aqui a Sinopse do filme: “ Em 2008, um cadáver identificado pela polícia com a certidão de nascimento do escritor João Paulo Cuenca foi encontrado no esqueleto de um edifício invadido na Lapa. Inspirado nesse fato, o filme investiga o roubo da identidade do autor num Rio de Janeiro fantasmagórico e em profunda transformação. Se na ficção e nas páginas policiais é lugar-comum os vivos roubarem a identidade dos mortos para começar uma nova vida, o que temos aqui é o caso oposto: alguém que rouba a ­identidade de um homem vivo para morrer em seu lugar. “

“A Morte de J. P. Cuenca” é um filme que desde seu início impacta e desafia o raciocínio e compreensão do espectador: Onde de fato inicia-se a ficção e fantasia e onde termina a realidade dos fatos? Aonde esse divórcio se dá? (Essas perguntas podem fazer mais sentido, quanto menos o espectador tiver informações prévias acerca do filme)

Cuenca (autor) provavelmente conseguiu atingir um marco considerável com essa obra. Trata-se a meu ver de uma obra de arte, com uma costura fina e das mais bem trabalhadas do cinema contemporâneo brasileiro.

Toda nossa fuga acumulada no braseiro do entretenimento diário é esquecida no momento em que começa a trama.

Ela se desloca em dois aspectos principais: Na luta do personagem (J. P. Cuenca) em descobrir o mistério de sua própria “morte” através da busca do paradeiro das pessoas relacionadas ao achado de seu documento de certidão de nascimento em 2008 junto a um cadáver em um edifício ocupado no bairro carioca da Lapa, e com o pano de fundo - que também pode ser considerado um “personagem” da trama - da cidade do Rio de Janeiro, em permanente destruição e construção, representando aí a dissolução de toda identidade histórica arquitetônica da cidade.

No encalço de sua busca, está uma outra personagem - interpretada pela atriz Ana Claudia Cavalcanti - que estava junto ao morto no momento da chegada da polícia. Conforme a trama se desenvolve, o que parece é que ela também investiga J. P. Cuenca.

O que torna o filme singular e inovador é a superposição de gêneros, que passeiam pelo policial investigativo, suspense, pitadas de terror, comédia (comicidade), romance, erótico ao final (quase pornográfico), e o mais importante: arte (que atravessa todo o filme).

O autor conseguiu inocular o sentido de suas possíveis referências e influências, tanto literárias quanto cinematográficas, que poderíamos talvez deduzir (ao estilo de um investigador não tão sério) como sendo, entre outras, Kafka, Georges Bataille, e o cineasta japonês Nagisa Oshima. Mas isso são apenas chutes deste autor que vos fala. Pois se realmente foram influências para o filme ou para o autor, o diretor articulou de forma acurada tudo isso, porque se apropriou de forma original desses signos.

Não bastasse essas atordoantes combinações, o enredo foi tomando proporções insólitas no decorrer do filme, onde o próprio espectador poderia se tornar convidado a investigar (e ser investigado pelo filme), principalmente no momento em que nosso imaginário é ativado no sentido de nos perguntarmos sobre a realidade da própria obra que está sendo assistida, e de que seus pressupostos básicos estariam em risco. A obra aí, como um todo, é colocada em questão. Evidentemente, não irei adiantar aos leitores, para não revelar spoilers, e não comprometer a dignidade de quem vos fala, pois pode ser obra do imaginário deste que escreve.

Como se vê, e para onde se olhe no filme, a questão da fragilidade da identidade está posta.
O autor é um auto-ironista, e usa isso a seu favor para momentos de sutilezas cômicas.

Essas auto fraturas, todos nossos auto-enganos, e tudo que tem a ver com nossa particular consciência das coisas, está em jogo nas considerações acerca de nós mesmos e do mundo que nos cerca. Pra resumir, nos enganamos demais com nossas conclusões sobre política, economia, e quem é o outro. Sobretudo, o problema do humano é um problema de linguagem.
Como não quero por os pontos nos is, não sendo este o objetivo deste curto texto, o que interessa aqui (novamente) é a questão da identidade, como falei acima.

Tanto a perda de identidade histórica da arquitetura da cidade, como a perda de identidade cultural, com a respectiva solidão que acaba por nos atravessar, diante da magnitude de nossos adversários, são objetos que poderíamos caracterizar como sendo de estudo para quem vê criticamente o filme e nossa sociedade.

Por toda essa conjuntura de interesses econômicos destrutivos que penetram nossas cidades, a nossa conhecida solidão é assim amplificada.

No filme, isso se reflete na solidão do personagem principal. Tanto em sua busca quase solitária, como quando num diálogo do filme, isso é deflagrado em suas palavras; A cena traz o agente funerário (que J. P. contrataria em caso de óbito de sua pessoa) dizendo a ele que precisaria ter um familiar ou apenas o nome de um “chegado” constando no documento que a partir dali deveria carregar consigo, pois caso morresse, só assim seria possível identificá-lo como cadastrado nessa agência, e assim receber os benefícios. Especificamente, o que deflagra sua solidão e desamparo, é quando J. P. lhe responde dizendo se ele (o agente) não poderia ser esse “chegado”. Essa solidão é uma sombra que o enlaça e persegue.

E são duas solidões que se encontram no final, à moda “batailliana” (veja livro: “L'Erotisme”), nessa Babilônia em que vivemos. Encontro que diz mais de nós do que dos personagens, no fundo. Encontro que produz, que possibilita a convergência numa fusionalidade perdida, uma entrega de corpos aludindo à morte (à pequena morte, ou o mais conhecido orgasmo), e o estar-em-carne-viva que é esta vida.

Entre sermos espectadores do mundo a morrer e jazer no quadradinho de deus, ou atuar com o mais autêntico de si e morrer numa “obra”, evidentemente que o elemento autoficcional é decisivo para que não nos tornemos artificiais. Dado o mundo contemporâneo, que produz delírios de toda ordem, e que cria no imaginário social o ideário de um novo mundo sem lastro real, o que resta é soterramento e a morte de nossas verdadeiras identidades humanas.

É verdade que somos parte do problema do qual desejamos erradicar do mundo. Mas é curiosamente aí que pode morar um dos grandes paradoxos de nossa existência: Se pretendemos nos livrar do problema, teríamos que nos livrar de nós mesmos. De todos nós.

Em suma, o filme do qual tento falar, joga com a dissolução das identidades, ora pela morte, ora pelo assassinato impiedoso de nossas memórias e afetos pelas instituições e pelo Estado (aqui há a supressão da identidade), ora pelo amor (no amor perde-se e ganha, há um perder-se no outro, há uma perda de referência sobre si), e ora pelo pelotão de perdas inevitáveis que podem também serem constitutivos de novas identidades.

Eu poderia aqui ainda falar de muitas coisas incríveis no filme, como a edição de som, da escolha da trilha sonora, entre outras. Mas isso seria tentar identificar e rastrear o inefável que é a película. E a falta que nos move.